O Censo 2022 do IBGE revelou que seis em cada dez quilombolas vivem em áreas rurais, evidenciando que o campo segue sendo o espaço de resistência e identidade para grande parte dessa população. Inspirada pelas vivências e saberes presentes nas comunidades quilombolas, a educadora Angelita Rocha construiu a sua trajetória pesquisando as relações entre educação, identidade e ancestralidade.
No interior da Bahia, ela aprendeu que educação não se esgota no currículo: ganha corpo quando se reconhece a comunidade, quando a identidade vira matéria viva. “Educar é um ato de amor, coragem e ancestralidade”, diz. A ideia não é discurso. É método, ética e caminho.
A formação acadêmica ajudou a refinar esse olhar. Doutora em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental, com linha de pesquisa em Educação, Angelita construiu sua atuação ao longo de duas décadas formando professores, gestores e comunidades escolares. O eixo é claro: educação antirracista, currículo emancipador e políticas públicas de equidade. A prática não se encerra em sala de formação. Transborda para projetos, consultorias e ações que tentam realinhar escola e território.
O ponto de virada veio em 2015, durante o mestrado, quando se aproximou da Comunidade Remanescente Quilombola de Castanhão, em Ibipitanga. A convivência com lideranças, as rodas de conversa, a transmissão de saberes e a força do cotidiano fizeram emergir uma urgência: construir um currículo vivo, capaz de enfrentar o racismo estrutural, a discriminação e o preconceito para além de afirmar a identidade e o pertencimento de estudantes quilombolas.

Audiência Pública do `Projeto Político Pedagógico da Escola Municipal Padre Aldo Coppola em Castanhão
Dessa imersão nasceram projetos pedagógicos ancorados em memória e território, formações com foco em práticas decoloniais e uma produção intelectual que inclui artigos, capítulos e conferências. O trabalho encontrou reconhecimento público quando o município de Ibipitanga recebeu (2025) o Selo Petronilha, concedido pela esfera federal à iniciativa de promoção da Educação Escolar Quilombola. Antes, em 2018, Angelita havia participado do processo de certificação da Comunidade de Castanhão pela Fundação Cultural Palmares. Em 2025, a trilha se ampliou com a certificação da Comunidade de São Gonçalo, reafirmando uma política de reconhecimento identitário construída ao longo dos anos.
As mudanças não se resumem a marcos institucionais. Elas atravessam pessoas. Angelita conta receber relatos de educadores que reencontraram sentido no trabalho ao incorporar a pedagogia do pertencimento e um olhar decolonial sobre o currículo. “Gosto de ouvir antes de falar, de compreender antes de propor”, explica. A escuta ativa funciona como porta de entrada para integrar saberes acadêmicos e saberes ancestrais, sem abrir mão do rigor conceitual.
O dado do IBGE, que mostra uma população majoritariamente rural 61,7% dos quilombolas vivem no campo, ajuda a dimensionar o alcance social de trabalhos como o de Angelita Rocha. É nesse cenário de desigualdades que ela tem contribuído para fortalecer escolas e comunidades, defendendo uma educação capaz de dialogar com a terra, com as memórias e com a ancestralidade. Sua atuação dá forma ao que o instituto aponta: a necessidade de políticas públicas que considerem a realidade rural quilombola como prioridade.
A síntese desse percurso também está no livro “Povos Tradicionais: Comunidade de Castanhão”, publicado (2019) pela Editora CRV. A obra resulta de pesquisa, escuta e vivência no território, e convida o leitor a encarar a escola como lugar de memória e libertação. O livro dialoga com sua tese de doutorado na Universidade do Estado da Bahia, que a tornou a primeira doutora a desenvolver pesquisa sobre Educação Escolar Quilombola na Bacia do Paramirim, sob o título “Educação Escolar Quilombola: desafios de uma política curricular e o pensamento decolonial”.

Feira Cultural Quilombola 2024: estudantes encenam a história do primeiro morador da Comunidade, presente em meu livro (Angelita Rocha está de roupa azul com seu livro na mão).
A atuação extrapola o município. Como formadora, palestrante e consultora, a autora tem levado reflexões a redes de ensino e eventos acadêmicos no Brasil e fora dele, como a Conferência Internacional da Sociedade de Ecologia Humana na UNEB, o Congresso Internacional de Direito dos Povos e Comunidades Tradicionais na UFBA e o Simpósio de Educação para as Relações Étnico-Raciais em São Paulo
Nas formações presenciais e on-line, o objetivo é qualificar políticas, fortalecer práticas e inspirar recomeços em escolas que lidam diariamente com silenciamentos e desigualdades.
A metodologia que sustenta esse trabalho combina ciência, ancestralidade e afeto. Não é metáfora: é escolha política e pedagógica. Quando fala em cura, a professora se refere a reparar invisibilidades, recontar histórias, reconstruir vínculos entre escola e território. “Meu diferencial está no compromisso ético com a transformação social e na convicção de que a educação é instrumento de justiça e libertação”, afirma. O resultado é uma prática que provoca mudanças concretas nas redes e, ao mesmo tempo, preserva a centralidade das comunidades.
Ao final, a narrativa que ela constrói sobre a escola propõe um deslocamento. Num país em que mais da metade da população quilombola ainda vive em áreas rurais, segundo o IBGE, a atuação de Angelita Rocha reafirma que a educação é também política de território, um processo de reconhecimento das vozes que sustentam o país. As certificações de Castanhão e São Gonçalo, o Selo Petronilha para Ibipitanga, a pesquisa que virou livro e as formações que reacendem propósitos compõem um mesmo movimento: transformar a educação em território de memória, identidade e esperança.
